Escola de Samba carioca vai mostrar na Sapucaí diferentes versões de Jesus Cristo 334w2d
Gay, trans, mulher, negro e índio: as novas faces de Jesus estão dando o que falar no meio religioso 5e1v71

Quando a Mangueira anunciou que levaria à Sapucaí diferentes versões de Jesus Cristo no Carnaval deste ano, grupos religiosos arregalaram os olhos. Negro, índio ou mulher, o Jesus da verde-e-rosa soou como “blasfêmia” para os mais conservadores. A um mês do desfile, o enredo “A verdade vos fará livre”, que promete uma releitura da vida do “filho do Homem”, virou alvo de protestos, há um abaixo-assinado com mais de 93 mil s contra a escola e até uma ameaça de processo. 2g206t
‘Com religião se brinca’ 5c1w5a
No Brasil de hoje, o embate entre fé e liberdade de expressão ganha terreno, fomentado pelas redes sociais, mas com muitos desdobramentos fora delas. No caso do Porta, a onda de protestos começou com postagens e um abaixo-assinado (com 2,3 milhões adesões) e culminou com quatro criminosos tentando se impor pela violência e tentativas de censura (um desembargador chegou a determinar que o episódio fosse tirado do ar, mas o STF cassou a decisão).
“Sinto lhe informar, mas com religião se brinca sim”, escreveu no GLOBO o humorista Fabio Porchat, ator e roteirista do especial de Natal. “Com religião, com futebol, com política, com a minha mãe, com o Detran, com o que você quiser. Isso não sou eu que estou dizendo, é a Constituição. A ‘lei de Deus’ não existe para o nosso país.”
Dias depois, começava a carga contra a verde-e-rosa.
— A Mangueira ataca a fé dos cristãos — diz o advogado e cientista social Frederico Viotti, representante do instituto conservador Plinio Corrêa de Oliveira, que lidera o abaixo-assinado contra o enredo. — Nosso objetivo é alertar a opinião pública, mas não descartamos ir à Justiça. Alegaríamos crime de vilipêndio.
Carnavalesco da escola e autor do enredo, Leandro Vieira argumenta:
— Jesus na cruz é a extensão de muitos corpos. Quem nega essa informação não conhece a Bíblia. Nosso enredo não é para dizer que Deus é mulher, mas para afirmar que ele também habita a mulher, vítima do feminicídio no Brasil. Jesus andou com pobres, perseguidos, e nosso Cristo está mais associado às dores dos oprimidos do que às lideranças políticas e religiosas que têm falado em seu nome.
No centro da discussão está a “imagem” de um mito, construída ao longo de séculos. Basta ir ao Google Imagens, para ver: o cenário pode variar bastante, o figurino também, mas Jesus… é quase sempre um homem branco, de cabelos lisos e, às vezes até, olhos azuis. Agora vá à Bíblia. E tente desvendar a aparência d’“aquele que tira o pecado do mundo”. Sem pistas de como era o nazareno, artistas o pintaram, desenharam e esculpiram como o imaginaram. E de nada adiantou estudiosos de todo o mundo demonstrarem que ele devia ser moreno, como a maioria de seus conterrâneos. Ficou para a “História” o tal homem branco, de cabelo liso e olhos claros da Renascença.
Muita pedra já rolou na relação entre a arte e o messias, naturalmente. Teve a ópera rock “Jesus Cristo Superstar” (1970), com músicas de Andrew Lloyd Webber, e a sátira “A vida de Brian” (1979), filmada pelo recém-falecido Terry Jones, do Monty Python. Teve o longa “A paixão de Cristo” (2004), de Mel Gibson, com Jim Caviezel, e “A última tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese, com Willem Dafoe.
Recentemente, porém, motivados pelo conceito de diversidade, artistas têm buscado representar o profeta do cristianismo de forma a contemplar grupos antes invisíveis para a produção cultural. Algo bem diferente da aparência apregoada por pintores como Leonardo da Vinci (seu “Salvator Mundi”, aliás, é a obra mais cara já vendida na História, tendo arrecadado US$ 450 milhões em 2017).
— A imagem universalizada de Jesus deixa mais da metade da população mundial, não por acaso os geopoliticamente periféricos, sem qualquer representação e identidade — observa o pastor Ronilso Pacheco, teólogo pela PUC-Rio e mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade Columbia. — Se identificar com Jesus, com o “ethos” cristão, é ser homem, branco, ocidental, hétero, “discreto” na moral e na sexualidade.
As representações sempre variaram à imagem e semelhança de quem o representa, como aponta Anthony Le Donne, professor de Estudos do Novo Testamento no United Theological Seminary, e autor do livro “A história de Jesus para quem tem pressa” (Editora Valentina). Ele usa a expressão “efeito refletor” para explicar que os modelos de Cristo serviram de espelho para crenças, padrões e ideias de variadas culturas.
‘Descabido e sem base’ 473q3s
Escrita por Ariano Suassuna em 1955 (e disponível no Globoplay em forma de minissérie, dirigida por Guel Arraes), a peça “O auto da compadecida” retrata um Jesus negro, que diante de um questionamento racista do personagem João Grilo (“pensava que Jesus era menos queimado”), avisa: “Vim assim de propósito porque sabia que isso iria despertar comentários”. Ou seja, escolheu a aparência para testar o preconceito. Se hoje essa representatividade vai além de tons de pele, as reações também talvez digam muito sobre as pessoas. Abordar a sexualidade de Jesus, por exemplo, é assunto que divide opiniões até de especialistas.
— Não me incomoda Jesus trans ou gay, porque ele sempre esteve ao lado dos oprimidos e injustiçados. A expectativa de vida dos transexuais no Brasil é de 35 anos. Eles serem assassinados deveria escandalizar os cristãos — afirma o pastor Henrique Vieira, que vai encarnar um Jesus morador de rua na Mangueira.
O historiador Julio Cesar Dias Chaves, professor de História do Cristianismo da UPIS — Faculdades Integradas, de Brasília, porém, acha “mais que exagero” falar da sexualidade de Jesus:
— É descabido e sem base histórica. A necessidade de as pessoas se verem representadas não lhes dá o direito de mudar o ado e a História na marra. Isso não a de uma tentativa de refletir valores e expectativas da nossa sociedade de hoje num personagem histórico.
É justamente essa tentativa que a socióloga Nina Rosas, professora-adjunta da UFMG e especialista em estudos de religião e gênero, acha natural. Ela vê todo o sentido na escolha de Jesus, com seu imenso capital simbólico, para levar uma determinada mensagem às pessoas (86,8% dos brasileiros definem-se como cristãos, segundo o IBGE). E entende que, com o fortalecimento do movimento negro, do feminismo e da luta LGBT, é coerente a busca por representatividade também aí.
— Com o recrudescimento do conservadorismo no Brasil, um Cristo negro, trans, índio é uma forma de confrontar esse movimento de retração, partindo de uma linguagem comum — ela diz.
O diretor Guel Arraes chama atenção para o que chama de “ideia única” que liga as representações de Cristo em Porta dos Fundos, “O auto da compadecida” e Mangueira:
— O espírito cristão deve ser de tolerância e compreensão.